quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Tradução


Minha vida sexual com minha mulher, Marta, é muito insatisfatória. Minha mulher é pouco lasciva e pouco imaginativa, não me diz coisas bonitas e boceja quando me vê galante. Por isso, às vezes vou de putas. Mas estas cada vez mais são apreensivas e estão mais caras, e ademais são rotineiras. Pouco entusiastas. Preferiria que minha mulher, Marta, fosse mais lasciva e imaginativa e que me bastasse. Fui feliz apenas uma noite com ela.
Entre as coisas que me legou meu pai ao morrer, há um pacote de cartas que ainda liberam um pouco de cheiro de colônia. Não creio que a remetente os perfumasse, mas que em algum momento de sua vida meu pai as guardou perto de um frasco e este virou sobre elas. Ainda se vê a mancha, e portanto o cheiro é sem dúvida o da colônia que usava e não usou meu pai (posto que se derramou), e não o da mulher que as enviava. Este cheiro, além do mais, é característico dele, cheiro que eu conheci muito bem e era invariável e não esqueci, sempre o mesmo durante minha infância e durante minha adolescência e durante boa parte da minha juventude, na qual ainda estou instalado ou que ainda não abandonei. Por isso, antes que a idade pudesse inibir meu interesse por estas coisas – o galante ou o passional –, decidi olhar o pacote de cartas que me legou e que até então não tivera curiosidade de olhar.
Essas cartas foram escritas por uma mulher que se chamava ou ainda se chama Mercedes. Utilizava um papel azulado e tinta negra. Sua letra era grande e maternal, de traço rápido, como se com ela não aspirasse a causar impressão, sem dúvida porque já a havia causado até a eternidade. Pois as cartas estão escritas como que por alguém que já estivesse morto enquanto as escrevia, se pretendem mensagens do além-túmulo. Não posso ao menos pensar que se tratava de um jogo, um desses jogos nos quais são aficionados as crianças e os amantes, e que consistem essencialmente em fazer-se passar por quem não se é, ou, dito de outra forma, em dar-se nomes fictícios e criar-se existências fictícias, seguramente pelo temor (não as crianças, mas sim os amantes) de que seus sentimentos demasiado fortes acabem com eles se admitem que são eles, com suas verdadeiras existências e nomes, que sofrem as experiências. É uma maneira de amortecer o mais passional e o mais intenso, agir como se ocorresse com outro, e é também a melhor maneira de observá-lo, de ser também expectador e dar-se conta dele. Além de vivê-lo, dar-se conta dele.
Essa mulher que assinava Mercedes havia optado pela ficção de enviar seu amor a meu pai mesmo depois da morte, e tão convencida parecia do lugar ou momento eterno que ocupava enquanto escrevia (ou tão segura da aceitação daquela convenção por parte da destinatário) que pouco ou nada parecia lhe importar o fato de confiar seus envelopes ao correio, nem de que estes levassem selos normais e carimbos da cidade de Contagem. Iam fechadas, e a única coisa que não possuíam era remetente, mas isto, em uma relação semi-clandestina (as cartas pertencem todas ao período de viuvez de meu pai, mas ele jamais me falou desta paixão tardia), é pouco menos que obrigatório. Tampouco nada teria de particular a existência desta correspondência que ignoro, se meu pai responderia ou não pela via ordinária, pois nada é mais frequente que a submissão sexual dos viúvos a mulheres intrépidas e fogosas (ou desenganadas). Por outra parte, as declarações, promessas, exigências, rememorações, veemências, protestos, rubores e obscenidades de que se nutrem estas cartas (sobretudo de obscenidade) são convencionais e se destacam menos por seu estilo que por seu atrevimento. Tudo isso nada teria de particular, quero dizer, se não fosse pelo fato de que a poucos dias de decidir-me abrir o pacote e passar a vista pelas folhas azuladas com mais equanimidade que escândalo, eu mesmo recebi uma carta da mulher chamada Mercedes, da qual não posso acrescentar que ainda vive, posto que me parecia estar morta desde o princípio.
A carta de Mercedes dirigida a meu nome era muito correta, não se tomava confianças pelo fato de haver tido intimidade com meu progenitor nem tampouco incorria na vulgaridade de transferir seu amor pelo pai, agora que este estava morto, a um doentio amor por seu filho, que seguia e segue vivo e era e sou eu. Com escassa vergonha por saber-me inteirado de sua relação, se limitava a expor-me uma preocupação e uma queixa e a reclamar a ausência do amante, que, ao contrário do prometido tantas e tantas vezes, ainda não havia chegado a seu lado seis meses depois de sua morte: não se havia reunido com ela ali onde haviam combinado, ou talvez seria melhor dizer quando. Em seu modo de ver, aquilo só podia dever-se a duas possíveis causas: a um repentino e posterior desamor no momento da expiração, o que fizera o defunto descumprir sua palavra, ou ao fato de que, ao contrário do disposto por ele, seu corpo haver sido enterrado e não cremado, o que – segundo Mercedes, que o comentava com naturalidade – poderia, se não impossibilitar, dificultar o escatológico encontro, ou reencontro.

Era certo que meu pai havia solicitado sua cremação, ainda que sem demasiada insistência (talvez porque foi só ao final, com a vontade minada), e que, no entanto, havia sido enterrado junto a minha mãe, já que ainda restava um lugar no jazigo familiar. Marta e eu o julgamos mais próprio e sensato e mais cômodo. A brincadeira me pareceu de mau gosto. Joguei a nova carta de Mercedes no lixo e ainda estive tentado a fazer o mesmo com o pacote antigo. O novo envelope levava selo e carimbo também de Gijón. Não cheirava a nada. Eu não estava disposto a exumar os restos para queimá-los.
A carta seguinte não tardou a chegar, e nela Mercedes, como se estivesse a par da minha reflexão, me suplicava para que cremasse meu pai, pois não podia seguir vivendo (assim dizia, seguir vivendo) naquela incerteza. Preferia saber que meu pai havia decidido finalmente não se reunir a ela do que continuar esperando por toda a eternidade, talvez em vão. Ela me tratava por senhor. Não posso negar que aquela carta me comoveu fugazmente (isto é, enquanto a lia, e não depois), mas o conspícuo carimbo de Astúrias era algo demasiado prosaico para que eu pudesse ver aquilo tudo como algo mais do que uma brincadeira macabra. A segunda carta também foi ao lixo. Minha mulher, Marta, me viu parti-la, e perguntou:

– O que é isso que tanto tem te irritado? – Meu gesto deve ter sido violento.
– Nada, nada – eu disse, e cuidei de recolher os pedaços para que ela não pudesse recompor a carta.
Esperava uma terceira carta, e justamente porque a esperava tardou a chegar mais do que o previsto, ou me pareceu que a espera foi maior. Era muito diferente das anteriores e se assemelhava às que havia recebido meu pai durante um tempo: Mercedes me tratava com intimidade e se oferecia em corpo, não apenas em alma. “Poderá fazer o que quiser comigo”, me dizia, “o quanto imagina e o quanto não te atreve a imaginar que possa fazer com um corpo alheio, o corpo de outro. Se atendes a minha súplica de desenterrar e cremar teu pai, de permitir que ele possa se reunir comigo, não voltará a esquecer-me em toda tua vida, nem mesmo na tua morte, porque te engolirei, e me engolirá”. Creio que ao ler isto pela primeira vez ruborizei, e durante uma fração de segundo cruzou pela minha cabeça a idéia de viajar a Gijón, para estar ao alcance daquela mulher (me atrai o insólito, sou sujo no sexo). Mas em seguida pensei: “Que absurdo. Nem sequer sei seu sobrenome”. No entanto, esta terceira carta não foi ao cesto. Ainda a escondo.
Foi então que Marta começou a mudar de atitude. Não é que de um dia para o outro se convertera em uma mulher ardente e deixara de bocejar, mas foi adquirindo um interesse e uma curiosidade maiores por mim ou por meu corpo já não muito jovem, como se intuísse uma infidelidade de minha parte e estivesse alerta, ou ela própria a tivesse cometido e quisesse averiguar se também comigo era possível o recém-descoberto.
– Vem aqui – me dizia às vezes, e ela nunca havia me solicitado antes. Ou então falava um pouco, dizia, por exemplo – Sim , sim, agora sim.
Aquela terceira carta que prometia tanto me havia deixado à espera de uma quarta ainda mais que a segunda irritante à espera da terceira. Mas essa quarta não chegava, e me dava conta de que aguardava o correio diário com cada vez maior impaciência. Notei que sentia um transtorno cada vez que um envelope não levava remetente, e então meus olhos iam rapidamente até o carimbo, para ver se era de Gijón. Mas ninguém escreve de Gijón.
Passaram-se os meses, e no dia de finados Marta e eu fomos levar flores à tumba de meus pais, que é também a de meus avós e a de minha irmã.
– Não sei o que acontecerá conosco – disse a Marta enquanto respirávamos o ar puro do cemitério, sentado em um banco próximo a nosso jazigo. Eu fumava um cigarro e ela controlava as unhas estirando os dedos a certa distância de si, como quem impõe calma a uma multidão. – Quero dizer, quando morrermos, aqui já não haverá lugar.
– Em que coisas você pensa.
Olhei para longe para adotar um ar sonolento que justificasse o que ia dizer e disse:
– Eu gostaria de ser enterrado. Dá uma ideia de repouso que não dá a cremação. Meu pai quis que o cremássemos, lembra? E não cumprimos sua vontade. Devemos segui-la, eu acho. A mim me incomodaria se não cumprissem a minha, de ser enterrado. O que você acha? Deveríamos desenterrá-lo. Assim, além do mais, haveria lugar para mim quando morresse, no jazigo. Tu poderia ir ao dos teus pais.
– Vamos embora daqui, tu está me deixando doentia.
Começamos a caminhar por entre as tumbas, em busca da saída. Fazia sol. Mas aos dez ou doze passos eu me detive, olhei a brasa do meu cigarro e disse:
– Não acha que deveríamos cremá-lo?
– Faça o que quiser, mas vamos sair daqui.
Joguei o cigarro no chão e o sepultei na terra, com o sapato.
Marta não esteve interessada em assistir à cerimônia, que careceu de toda emoção e teve a mim como única testemunha. Os restos do meu pai passaram de reconhecíveis em um ataúde a irreconhecíveis em uma urna. Não achei que fizera falta espalhá-los, e, ademais, fazer isso está proibido.
Ao voltar para casa, já tarde, me senti deprimido; sentei-me na poltrona sem tirar o agasalho e acender a luz, e fiquei ali esperando, sussurrando, pensando, ouvindo o chuveiro de Marta ao longe, talvez me recompondo da responsabilidade e do esforço de ter feito algo que estava pendente desde muito tempo, de haver cumprido um desejo (um desejo alheio). Depois de um instante minha mulher, Marta, saiu do banheiro com o cabelo ainda molhado e enrolada em um roupão, que é rosa pálida. A iluminava a luz do banheiro, no qual havia vapor. Sentou-se no chão, a meus pés, e apoiou a cabeça úmida em meus joelhos. Depois de alguns segundos eu disse:
– Você não deveria se enxugar? Está me molhando o agasalho e a calça.
– Vou te molhar todo – disse ela, e não trazia nada debaixo do roupão. Iluminava-nos a luz do banheiro, ao longe.
Aquela noite foi feliz porque minha mulher, Marta, foi lasciva e imaginativa, me disse coisas bonitas e não bocejou, e me bastou. Isso eu nunca esquecerei. Não voltou a se repetir. Foi uma noite de amor. Não voltou a se repetir.
Alguns dias depois recebi a quarta carta por tanto tempo esperada. Ainda não me atrevi a abri-la, e às vezes tenho a tentação de rasgá-la sem mais nem menos, de jamais lê-la. Em parte é porque creio saber e temo o que dirá essa carta, que, ao contrário das três que me dirigiu Mercedes anteriormente, tem cheiro, recende um pouco a colônia, a uma colônia que nunca esqueci ou que conheço bem. Não voltei a ter uma noite de amor, e por isso, porque não voltou a se repetir, tenho às vezes a estranha sensação, quando a relembro com saudade e intensidade, de que naquela noite traí meu pai, ou de que minha mulher, Marta, me traiu com ele (talvez porque nos demos nomes fictícios ou criamos existências que não eram as nossas), ainda que não caiba dúvida de que naquela noite, na casa, no escuro, sobre o roupão, só havia Marta e eu. Como sempre, Marta e eu.
Não voltei a ter uma noite de amor nem voltei a me satisfazer apenas com minha mulher, e por isso também vou de putas, cada vez mais caras e apreensivas, belas travestis. Mas tudo isso pouco me interessa, não me preocupa e é passageiro, ainda que tenha que durar um pouco. Às vezes me surpreendo pensando que o mais fácil e desejável seria que Marta morresse antes, porque assim eu poderia enterrá-la no lugar do jazigo que ficou vazio. Deste modo, não teria que dar-lhe explicações sobre minha mudança de opinião, pois agora desejo que me cremem, e não que me enterrem, de modo algum que me enterrem. No entanto, não sei se ganharia alguma coisa com isso – me surpreendo pensando –, pois meu pai deve estar ocupando seu lugar junto a Mercedes, meu lugar, por toda a eternidade. Uma vez cremado, pois – me surpreendo pensando –, teria que acabar com meu pai, mas não sei como se pode acabar com alguém que já está morto. Penso às vezes se essa carta que ainda não abri não dirá algo diferente do que imagino e temo, se não me daria ela a salvação. Logo penso: “Que absurdo. Nem sequer nos vimos”. Logo observo a carta, a dobro e lhe dou voltas entre minhas mãos, e ao final acabo sempre a escondendo, ainda sem abri-la.

segunda-feira, 5 de março de 2018

O Tarô e o Caminho da Individuação

The Fortune Teller

Não é por acaso que os 22 Arcanos Maiores do Tarô são numerados. Suas cartas, perfiladas tal qual os capítulos de uma novela, retratam uma história verdadeira: a do ser humano em sua senda iniciática, repleta de experiências transcendentes e desafios que se nos apresentam como oportunidades para o autoconhecimento.
Desde a antiguidade, espalhados por distintas culturas, incontáveis são os mitos que abordam a imagem do homem colocado à prova, chamado a enfrentar perigos e resolver enigmas, a ultrapassar seus próprios limites e escolher o rumo certo nas encruzilhadas do caminho.
Foi o médico psiquiatra suíço Carl G. Jung (1875-1961), inicialmente seguidor de Freud, e que desenvolveu sua própria teoria para a compreensão do psiquismo, a psicologia analítica, quem cunhou o nome de “individuação” para esse processo ininterrupto de aprimoramento pessoal, destinado a orientar a personalidade para algo maior e transcendente, a cumprir psicologicamente o mesmo papel a que se destinavam os rituais de iniciação dos povos antigos.
A questão fulcral da psicologia junguiana esbarra num dos principais mistérios da existência, o da consciência em busca da fonte primordial, inconsciente em sua essência, de onde se desprendeu originalmente. Para Jung, o ego poderia ser comparado ao inconsciente na mesma proporção que uma ilha estaria para o oceano à sua volta. Outra analogia seria a do planeta Terra, pequenina morada da civilização humana (a consciência), comparado ao universo desconhecido no qual estamos inseridos (o inconsciente).
Jung chamou de ego o núcleo da consciência, sendo a individuação toda a busca empreendida por esta diminuta instância em direção ao presumido centro da totalidade psíquica, a abranger obviamente o mundo inconsciente. Ao ponto de fusão entre consciência e inconsciente, núcleo da personalidade total e ao mesmo tempo passagem para uma dimensão transcendente e coletiva, espécie de porta para o psiquismo universal, Jung denominou de Selbst, em inglês self, que em português melhor ainda se traduz por “si mesmo”.
O si mesmo seria o órgão regulador de todo o psiquismo, dotado de qualidades abissais que ultrapassam as dimensões do simples ego. Paradoxalmente, o si mesmo, ponto central da psique, preenche toda a sua circunferência, abarcando todos os fenômenos anímicos possíveis, a incluir portanto, os do próprio ego. Nicolau de Cusa, monge filósofo do século XV, já usara imagem semelhante ao referir-se à onisciência divina: “Deus é uma esfera cujo centro está em toda parte e cuja circunferência não se delimita em parte alguma”.
As alegorias dos 22 Arcanos Maiores, ainda que veladas por intrincado hermetismo, de caráter particularmente medieval no baralho de Marselha, representam nada mais que as situações comuns, reservadas a todos aqueles que se dediquem a explorar seu mundo psicológico mais profundo. Os que partem em busca de si mesmos em geral abrem suas vidas para o amadurecimento pessoal, e sofrem experiências consideradas arquetípicas, de cunho propriamente iniciático.
Arquétipo é palavra de origem grega, primeiramente usada por Platão, a significar “padrões arcaicos” (arqui = antigo, arcaico + typos = padrão, matriz), e Jung se valeu do termo para denominar certos padrões registrados no comportamento da humanidade, que vêm sendo manifestos ao longo de sua história pelas mais diversas culturas. Embora semelhantes entre si, expressam-se pela variedade dos mitos, religiões, lendas ou folclore; e através de padrões também identificáveis em nosso mundo onírico, quer no cerne de nossos sonhos, quer sob a forma das fantasias.
O arquétipo serve, portanto, como matriz comportamental herdada por todo ser humano, como arcabouço capaz de selecionar nas experiências da vida os elementos significativos que estejam em sintonia com o processo inato da individuação. Os arquétipos, verdadeiras potências imateriais, surgem como entidades impalpáveis e incognoscíveis, mas se manifestam por meio de idéias e imagens, e vestem-se com as mais distintas roupagens de acordo com as culturas que os representam.
Neste sentido, o Tarô os simboliza amplamente, e um mergulho no mundo dos Arcanos permite-nos espelhar nossa alma. Por isso a “leitura” das cartas, quando contemplativa e dinâmica, bem pode transportar-nos para um mundo psicológico mais profundo. Percorramos juntos então, passo a passo, esta estrada pictográfica da individuação.
Comecemos pela especial figura do Louco que, exceção à regra, não se mostra numerada. O Louco, por não ter um número que lhe determine a posição, acha-se livre para ser notado em qualquer parte da jornada, podendo assumir diferentes valores em nossa vida; daí talvez ter sido preservado sob a efígie do coringa nos baralhos mais comuns. Preferencialmente o colocamos entre o tudo e o nada de Pascal, isto é, simultaneamente ocupando o início e o fim da jornada. Feito Jano dos romanos (a divindade de dois rostos que nunca se olham, voltados que estão para lados opostos), é O Louco quem sabe do porvir tão bem quanto do passado, já que se acha situado antes do primeiro Arcano, O Mago, ao mesmo que ocupa tempo posição após o último, O Mundo. O Louco confere assim ao conjunto um caráter rotativo e perene. Ao assumir duplo papel de fechar e (re)abrir o ciclo, promete a continuidade da individuação. Representa ainda uma força inconsciente, não personificada, por isso sem número, e a figura de bobo da corte expressa a ambivalência de sua função, já que os tais bobos medievais, antes de idiotas, eram sábios, quiçá os únicos capazes de falar verdades ao rei sem o risco de perder a cabeça.
O Louco nos prende assim em sua mágica, na paradoxal leitura de seu sentido. Se pode ser visto como um bobo que nada sabe sobre si, caminhando a esmo, por outro lado é ele o sábio que, tendo mergulhado no abismo de si mesmo, ressurge renascido, disposto a retomar sua senda. E não há monotonia nem repetição nesse processo; embora as experiências mais fortes sejam arquetípicas, elas são inusitadas no modo como acontecem e nos propiciam leituras sempre novas do livro da vida. Também os passos do Louco nunca são lineares, pois a individuação pressupõe voltas e rodeios até que nos aproximemos do si mesmo, ou até que tropecemos em algo e caiamos dentro dele.
A carta seguinte, O Mago, é a consciência personificada. Resulta da transformação do impulso inconsciente do Louco, agora direcionado conscientemente para o trabalho da individuação. Decididamente, O Mago é o grande herói desta jornada (ele é cada um de nós), pois a cada passo nos transformamos, conforme desfilamos pela “estrada real” dos Arcanos. Ele está em pé, é portanto ativo; e, feito aprendiz de feiticeiro opera na mesa à sua frente. Um de seus braços aponta para cima, o outro para baixo, como se nos lembrasse da primeira máxima de Hermes Trimegistrus, a ensinar que o nível humano da existência apenas reproduz o plano cósmico da vida; que somos sim manifestação da divindade, mas nem por isso privilégio algum da natureza. O homem precisa trabalhar com o que tem às suas mãos e intuir acerca do universo à sua volta para que venha a compreender-se.
Consoante os preceitos básicos da magia, O Mago posiciona-se como elo entre os planos humano e divino, surge como centro e medida de todas as coisas. Quatro objetos, dentre outros, despertam-nos a atenção. São eles a moeda e a baqueta que traz em suas mãos, além dos copos e da adaga postos sobre a mesa. Aludem claramente aos quatro naipes do baralho, ouros, paus, copas e espadas, que representam a inteireza do caminho ora descortinado. Isto porque o 4, assim como o 12, são números que por excelência expressam a totalidade, haja vista serem quatro as estações do ano e doze o número de seus meses, também as constelações do zodíaco por onde o sol passeia ao longo de um ciclo. Quatro e doze sempre nos dão a idéia de algo completo.
Jung escolheu as mandalas (nome sânscrito a designar “círculo mágico”) como símbolos da integridade psíquica, visto que são geralmente representadas por formas circulares (ou outras que insinuem a presença de um centro); de mesmo modo podemos perceber em cada um dos 22 Arcanos uma mandala oculta. No Mago ela se mostra tanto pelos instrumentos dos quatro naipes citados como pela mesa de três pés e quatro cantos, números estes cujo produto nos leva ao 12. É como se O Mago já tivesse diante de si o tesouro que deseja encontrar pelo caminho, o que, aliás, lhe permite seguir viagem mesmo que não saia do lugar onde se encontra, até porque a individuação é processo essencialmente espontâneo de nosso psiquismo.
Pois bem, tendo à frente uma senda que se desdobra em quatro caminhos, O Mago, resoluto, entende que precisa percorrer simultaneamente todos eles, sob pena de nunca alcançar a transcendência, razão pela qual se divide ele próprio no quatérnio que lhe sucede, formado pelos próximos quatro Arcanos, A Papisa, A Imperatriz, O Imperador e O Papa.
Estes representam uma diferenciação a mais da “ciência dos opostos”, já insinuada pelos braços do Mago que ligavam o em cima ao embaixo. Observemos que as quatro cartas se casam muito bem, são duas figuras femininas e duas masculinas; há da mesma forma uma dupla de imperadores e outra de sacerdotes; e é no equilíbrio de cores de suas vestes que o baralho de Marselha oculta outros mistérios. O detalhe mostra que as mulheres vestem mantos azuis sobre os vermelhos, ao passo que os homens trazem a composição contrária, com vestes vermelhas por cima das azuis. Aqui as cores também têm significado; o vermelho associa-se ao lado consciente, ao aspecto racional do psiquismo. O azul representa o inconsciente, a irracionalidade, os processos intuitivos de percepção.
Nas personagens femininas (A Papisa e A Imperatriz), a intuição prevalece sobre a razão; já na dupla masculina (O Imperador e O Papa), são os processos racionais que estão por cima. A psicologia analítica identifica, além disso, tanto o aspecto feminino no interior do psiquismo masculino, ao qual Jung batizou de anima (no caso, definido pela Papisa), bem como a relação contrária, a essência masculina no psiquismo feminino, denominada animus, no Tarô, melhor representado pelo Papa.
A Papisa é antes de tudo o complemento do Mago. Guarda tudo aquilo que lhe falta, sendo portanto o verdadeiro motor de sua busca. Se o mago é movimento, ela é repouso; se ele é ativo, ela é a receptividade em pessoa. Ele é ação; ela, reflexão. Em suma, todo o desenrolar do baralho a partir do Mago é a Papisa, pois tudo aquilo que estiver em seu caminho servir-lhe-á como complemento. A relação Mago-Papisa no Tarô é correlata do binômio Yang-Yin dos chineses; aliás não poderia faltar no esoterismo do Ocidente o arquétipo da “ciência dos opostos”.
Havendo o Mago experimentado das diferentes maneiras de perceber o mundo, e consciente da natureza interminável de seu caminho, pela primeira vez tem nítida noção das dificuldades que ainda enfrentará. Sua determinação estará sempre à prova.
Na situação arquetípica sucedânea, o herói depara-se com a encruzilhada do Enamorado, quando se encontra dividido entre duas mulheres que cobram dele uma escolha. A que está à sua direita, para a qual ele volta sua face, toca-lhe o ombro, e veste roupas predominantemente vermelhas. Representa a via racional. A outra moça, aparentemente mais jovem, vestindo principalmente o azul, toca-lhe o coração, como se quisesse despertar suas emoções, seu lado intuitivo. No alto, acima da cabeça do herói, em instância que transcende sua consciência, um anjo direciona sua seta para a via intuitiva, como se quisesse orientá-lo em sua escolha. Enfim, aí está representado o drama do livre arbítrio, capaz de atormentar a consciência com o conflito da eterna dúvida. O personagem acha-se cruelmente dividido entre o racional e o intuitivo, observe-se suas roupas listradas de azul e vermelho, além do amarelo, seu aspecto pessoal. Mas pouco importa por onde seguirá nosso herói, até porque razão e intuição encontram-se mescladas em todas as experiências da vida, apenas predominando ora esta, ora aquela. O principal é que o herói dê seu próximo passo, para que não reste estagnado em seu caminho. Siga por onde seguir, desembocará na tríade seguinte, O Carro, A Justiça, e O Eremita.
Decidindo prosseguir, O Mago experimenta a extroversão das conquistas rápidas, simbolizado pelo Arcano VII, O Carro. O primeiro terço das 21 cartas numeradas se completa. O Mago está emancipado. Destemido, deixa de ser mero neófito para amadurecer na senda, e mediado pelo senso da Justiça, virtude que será assimilada no Arcano subseqüente, chega à condição de maior introversão e capacidade introspectiva, quando descobre que há sabedoria em seu próprio poço, a ser buscada por um processo sereno e cuidadoso, como o faz o velho Eremita.
A carta X, A Roda da Fortuna, traz as vicissitudes da vida, com seus rodopios e reveses. O herói deve afinal saber tirar proveito do movimento do cosmos. “Há nas lides do homem uma maré que, se aproveitada enquanto cheia, o levará à fortuna”, diria Shakespeare.
No Arcano XI, A Força, alcançamos a metade do caminho, mas prosseguem as vicissitudes, até que O Mago perceba que, invariavelmente, ações sutis repercutem melhor do que as atitudes brutas, como nos mostra a figura intuitiva da vestal, que sob um manto azul, domina com suas delicadas mãos toda a brutalidade duma besta-fera, contendo-a pela mandíbula. A fera ocupa a metade inferior da carta, e não fosse sua cor distinta, estaria misturada ao hábito da personagem. Representa os processos instintivos, aspectos brutos que esperam ser dilapidados e transformados em algo mais sutil.
Os dois Arcanos seguintes nos trazem a experiência da morte. O Enforcado é ela própria, em seu sentido terminal. A lâmina mostra o herói dependurado, de cabeça para baixo, vendo a vida por seu outro ângulo, ou como se estivesse num ataúde, cercado por terra e troncos, os dois verticais com seus doze ramos podados, a representar o esgotamento da mandala, a morte aparente do dinamismo psíquico. Mas o herói, se sobrevive à força perturbadora deste arquétipo que dele exige sacrifícios, comunga pela primeira vez com o mundo transcendente, representado pelo Arcano XIII. Por ser o único sem nome, nem deveria ser chamado Morte. O esqueleto que ceifa sugere transformações substanciais, a troca do velho pelo novo. É um momento iniciático de fértil aprendizagem, representada pelos arbustos em quantidade que brotam neste novo campo da existência. Afinal, o 13 expressa o rompimento da mandala, a transposição da ordem; a soma de 1+3, entretanto, leva-nos de volta ao 4, à mandala de uma nova dimensão.
O Arcano XIV, A Temperança, é a terceira das quatro virtudes medievais a estar representada no Tarô. As outras três, já vistas, são a justiça (Arcano VIII), a prudência (Arcano IX), e a força (Arcano XI). Este tema é chave dos alquimistas, e o segundo terço se completa com o Mago promovido à esta condição. A Temperança se (re)vela no equilíbrio parcimonioso de seu movimento, e a figura feminina aqui traz azul e vermelho em iguais proporções.
Uma vez feito alquimista, pode agora nosso herói experimentar as provações mais duras, reservadas aos que penetram no Diabo, Arcano XV, ou na Casa de Deus, Arcano XVI.
Tais estações referem-se ao mundo sombrio, aos aspectos mais críticos de nossa personalidade, produtos que são de partes pouco exploradas ou desconhecidas de nós mesmos. O demônio nada mais faz do que escravizar a nossa consciência, prendendo-a em seu altar, exigindo de nós o auto sacrifício da extinção de nossas buscas. É por meio dele (o intelecto) que nos sentimos separados da fonte primordial. Por conta dessa mesma consciência é que podemos refletir acerca da única certeza que temos, a de nossa morte, de onde nasce uma natural angústia capaz de nos prender em temores pessoais. O Mago descobre que a única forma de evitar o demônio é enfrentá-lo! Se por um lado não devemos negar os méritos de nosso intelecto, por outro, de alguma forma, precisamos transcendê-lo.
A Casa de Deus é o arquétipo da destruição, das mudanças avassaladoras em nossas vidas. Por vezes, somente algo assim tem força capaz de nos arrastar para longe do Diabo que antes nos prendia. A Torre fulminada mostra o ego abalado pelo grito de um inconsciente incontido, simbolizado pela labareda de fogo que explode a cúpula da Torre, cuja forma lembra uma coroa, real adorno de uma consciência que se esquece muitas vezes de perceber a realidade por detrás da realeza.
O Arcano XVII, A Estrela, nos entrega à esperança. Revela à consciência libertada que a individuação continua a ser possível. Ao menos é o que representam as luzes que brilham no firmamento. A jovem desnuda não é outra senão o nosso herói, despido dos valores mundanos, a verter no rio do inconsciente coletivo suas próprias águas (azuis) de seu mundo intuitivo, de seu inconsciente pessoal. As estrelas no céu simbolizam as almas já individuadas. Pela primeira vez os 4 elementos se agrupam numa mesma lâmina: água, fogo, terra e ar estão aí representados, este último reafirmado pela presença do pássaro, símbolo da alma inclusive. De novo descobrimos a mandala disfarçada.
A Lua, Arcano XVIII, representa as trevas, os porões da alma; na psicologia junguiana será chamada de sombra. A sombra representa o lado oculto do psiquismo, fonte de inúmeros perigos e potenciais que jazem adormecidos. As trevas psicológicas apresentam sérios desafios à nossa frágil consciência, que precisará pedir ajuda à intuição para vencer a provação noturna. A Lua é receptiva, absorve a energia (as gotas) do sistema, e demarca a aproximação entre consciência e inconsciente, aqui representados pela duplicidade de símbolos, dois lobos a serem vencidos e dois templos a serem alcançados. Jung admitia que quando os símbolos se duplicavam em nossos sonhos, provavelmente estaria havendo a assimilação de valores inconscientes por uma consciência que se aprimora.
Vencida a noite negra, o Sol do Arcano XIX é quem traduz o momento áureo da jornada, quando a consciência comunga do si mesmo, inspirado instante em que ela se ilumina. A energia agora se espalha pelo sistema, e as duas crianças (consciência e inconsciente) que se tocam para cá do muro que antes as separava, descobrem-se idênticas, visto que nenhuma diferença deveria mesmo haver entre instâncias de um mesmo psiquismo. No contato mútuo das crianças, a ponte para o si mesmo se apresenta, e a iluminação preenche esta mandala.
Mas não por isso o caminho chega ao fim. Restam ainda a análise e a síntese alquímica do processo, previstos pelos últimos dois Arcanos, O Julgamento, XX, e O Mundo, XXI. Juntos simbolizam o ajuste da mandala pessoal, momento em que o herói procura reorganizar seu mundo psicológico, transformado que está por tudo aquilo que sofreu. No Mundo, a síntese (a mandala) se define claramente. O herói está liberto no núcleo da carta, em sintonia com o universo à sua volta. As figuras nos quatro cantos da carta são alusão aos quatro naipes em que se desdobra o baralho. Mas o Mundo é apenas o fechar de um ciclo. Serve para impulsionar o herói, nós mesmos, para frente. Afinal, somos sábios apenas em relação àquilo que vivemos, e completamente Loucos frente ao que nos é desconhecido.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Tristão e Isolda

Resultado de imagem para Tristão e Isolda

Quer ele vê-Ia feliz ao lado do seu novo marido? 

Pode parecer uma pergunta ingênua, mas se Tristão afirma ser motivado pelo "amor", a pergunta cabe. E mais tarde ele diz: "Quero morrer, mas que a rainha saiba que é por seu amor que morro. Se ao menos eu pudesse saber se ela sofre por mim como sofro por ela!" Que tipo de "amor" é esse que leva Tristão a desejar não a felicidade da amada, mas o seu sofrimento? Se ele acredita que ela se reconciliou com o passado e está feliz com o Rei Mark, por que vai ele voltar lá para jogar lenha no fogo da paixão? Por que ele procura renovar - lhe o sofrimento, atrapalhando sua vida com o Rei Mark? E quanto a Isolda? Que amor é esse que a leva a desprezar Tristão porque ele se casou com outra mulher? Isolda é casada com o Rei Mark e vive com ele. No entanto, por esses estranhos padrões, Tristão não pode casar-se com outra mulher, não pode amar nenhuma outra mulher; e, acima de tudo, ele não pode ser feliz. Se ele fizer uma que seja dessas coisas humanas normais, então ele é um "traidor" para Isolda a Bela! Que espécie de "amor" faz com que Isolda queira ver Tristão sempre só e infeliz, sem uma esposa, sem um lar, sem filhos? Isso não é amor. O amor é um sentimento dirigido para um outro ser humano, não dirigido para a própria paixão. O amor deseja o bem-estar e a felicidade da pessoa amada e não aquele drama enorme que se faz às custas do outro. Ainda assim, estranhamente, Tristão e Isolda chamam a isso "amor". 

Pelos padrões humanos está tudo invertido: eles se "amam", mas cada qual quer que o outro sofra, que seja infeliz. Eles falam de "traição", mas para eles "fidelidade" mútua pressupõe que o marido de uma ou a esposa do outro sejam traídos. Eles se recusaram a construir uma família e a levarem juntos uma vida humana normal, e nenhum permite que o outro consiga fazer isso com alguém mais. Tudo isso não chega a ser realmente novo para nós. Já vimos pessoas "apaixonadas" agirem dessa forma. A grande maioria dentre nós já viveu essas mesmas atitudes contraditórias. Às vezes conseguimos ser ligeiramente mais sutis, mas no mito o paradoxo aparece dessa forma tão gritante porque a mensagem brota nua e crua diretamente do inconsciente. O maior dos paradoxos é o próprio amor romântico: como um conjunto de procedimentos, ele é a fonte de onde emanam todas essas contradições. O amor romântico é a mistura profana de duas espécies sagradas de amor. Um é o amor divino do qual já foi falado: é o impulso natural que nos leva para o mundo interior, é o amor que a alma sente por Deus, ou pelos deuses, ou pelas fantasias e desejos. O outro é o amor "humano", o amor que sentimos pelas pessoas - seres humanos de carne e osso. Ambos são válidos, ambos são necessários. Mas, por algum artifício da evolução psicológica, nossa civilização misturou os dois tipos de amor na poção do amor romântico e quase pôs ambos a perder. 

O melhor do romantismo e do amor romântico é que são tentativas válidas para devolver à consciência ocidental o que havia sido perdido. O romantismo procura restaurar o sentido do lado divino da vida, a vida interior, o poder da imaginação, o mito, o sonho, a fantasia. A tragédia, que essa parte da nossa narrativa mostra, é que usa-se mau o ideal do romantismo, situa-se erradamente o amor divino, e neste processo acaba-se destruindo nossos relacionamentos humanos. Chamam de "amor" o que não é amor, invertemos o significado de "fidelidade", e perseguimos uma imagem idealizada, efêmera, da anima, em vez de amarmos um ser humano de carne e osso.

À medida que se examina algumas das terríveis complicações da tragédia em que se transforma "Tristão e Isolda", precisa-se lembrar que o amor romântico é um estágio necessário de nossa evolução psicológica. Não importa o que possa ser dito contra ele, não importa o que tenha que ser feito para consertar nosso relacionamento com ele, é o nosso caminho: a nossa maneira ocidental de evoluir e purificar essas duas espécies de amor foram misturados na poção mágica. O amor romântico é como o "túnel do amor", não podemos ficar empacados lá dentro no escuro, temos de sair do outro lado e resolver o paradoxo. Mas para os ocidentais parece ser necessário entrar no túnel. A única maneira que conhecemos de encontrar o sentimento, de enfrentar os dois grandes tipos de amor, é nos "apaixonando", é nos torturando pelo paradoxo, para então enfim aprender. Na medida em que formos avançando, e expondo as contradições, e desmascarando as ilusões, lembremo-nos de que a questão não é saber se devemos louvar o amor romântico ou condená-Io, se devemos conservá-Io ou jogá-Io fora. Nossa tarefa é fazer dele um caminho para a conscientização, viver honestamente o paradoxo e aprender a respeitar os dois mundos que existem no amor romântico: o divino, de Isolda a Bela, que Tristão persegue; e o humano, de Isolda das Mãos Brancas, que ele rejeita.

Tristão nunca chega a ter um relacionamento humano com Isolda a Bela, nunca assume os compromissos do dia-a-dia de uma vida estável, para que possam encontrar o calor humano e o companheirismo que tanto necessitam. É espantoso constatar isso quando se pensa em todos os dramas e aventuras pelos quais eles passam. Encontram-se secretamente, assumem riscos inimagináveis, são arrastados ao cadafalso, fogem e continuam seu drama na Floresta de Morois - lutando com a natureza e com os inimigos. Tudo isso, no entanto, não pode nunca traduzir um relacionamento humano!

Um dos grandes paradoxos do amor romântico é que ele jamais cria um relacionamento humano enquanto permanece romântico. Ele cria drama, aventuras ousadas, cenas de amor ardentes e maravilhosas, ciúmes e traições; mas parece que as pessoas nunca se decidem por um relacionamento próprio de seres humanos de carne e osso até que superem o estágio do amor romântico, e passem a se amar em vez de se apaixonar. Isolda a Bela é a anima. É o amor divino que Tristão procura nela; inconscientemente, ele procura uma passagem para o mundo interior. Tristão não consegue ter um relacionamento humano comum com Isolda a Bela porque ela é desejo divino e deve ser vivida como um elemento interno, um símbolo. Quando Tristão parte da Cornualha, deixando Isolda com o Rei Mark, ele cai em desespero, crê que está abandonando a anima, literalmente personificada numa mulher mortal, exatamente como fazem todos os homens quando "apaixonados". Do ponto de vista de seu ego, a vida não tem mais sentido, pois ele acha que este sentido somente pode ser encontrado em Isolda a Bela. "Separados, os amantes não podiam nem viver nem morrer, pois que era vida e morte ao mesmo tempo, e Tristão buscou refúgio para as suas mágoas nos mares, ilhas e terras estrangeiras." E assim, chega-se à famosa pergunta de Tristão: "Será que jamais encontrarei alguém que ponha um fim à minha tristeza?" Embora para o seu ego pareça a morte, o destino o conduz em direção à própria vida! Pois a tranquila e despretensiosa mulher que o aguarda no Castelo de Carhaix é a encarnação da vida humana: ela é Isolda das Mãos Brancas, Isolda da Terra. Como Tristão, tem-se esta Isolda com um fardo de preconceitos, com a lealdade já comprometida anteriormente. 

O simples não é bem vindo: "simples" significa monótono ou obtuso ou estúpido. Nós nos esquecemos de que a simplicidade é uma necessidade da vida humana: é a arte humana de encontrar sentido e alegria nas coisas pequenas, naturais e corriqueiras. No seu nível mais elevado, é a consciência que vê através das confusões que são inventadas, encontrando a realidade essencial e singela da vida. Mas em nossa época, temos um preconceito coletivo contra Isolda das Mãos Brancas. 

Se um relacionamento direto, simples e espontâneo nos oferece felicidade, dificilmente é aceito. É "simples demais", "monótono demais". Indivíduos estão condicionados a respeitar apenas o que é exagerado "pomposo, o que é grande, complicado ou "altamente excitante". A verdadeira tragédia de Tristão e Isolda está oculta num lugar quieto e humilde, onde as pessoas não estão acostumadas a olhar, e não é a morte de Tristão, pois todos os homens morrem. 

A tragédia de Tristão é que ele se recusa a viver enquanto ainda está vivo, e assim ele não tem vida humana ou valor humano. 

A história de Isolda das Mãos Brancas é a história da oportunidade perdida por Tristão quando deixa de descobrir que existem duas espécies de amor e duas espécies de relacionamento: um com a anima, no interior, e outro com a mulher, no mundo físico. Cada qual é distinto do outro e cada um tem seu próprio valor, mas se Tristão, como nós, tivesse uma segunda chance, ele aprenderia com Isolda das Mãos Brancas ao invés de rejeitá-Ia. Ele poderia aprender que o significado da vida não é encontrado apenas na busca do seu ideal interior; ele também pode ser encontrado na mulher física com a qual vive no castelo de Carhaix.